quarta-feira, 13 de março de 2019

Letter Challenge

Um dia você disse, para o desgosto da sua professora, e muito provavelmente para o orgulho dos seus pais, que seria impossível um corpo ocupar dois lugares ao mesmo tempo. É que a sua arrogância infantil não estava, nem nunca esteve, familiarizada com o conceito do “a gente”. Naquele tempo, a melhor ideia que você poderia ter, no tocante ao seu próprio corpo, teria mesmo de envolver videogame e sorvete, o que, arrisco dizer, se fossem possíveis de se executar ao mesmo tempo (e pensando bem agora, capaz que sejam), seria o equivalente a encontrar o “gente” do seu “a” na vida adulta. A gente, esta entidade que nos tornamos - e que, pra ser minuciosa, recentemente nos retornamos - sobre ela, é curioso pensar em retrospecto - não como você gosta de fazer, rememorando os bons momentos há dois minutos do seu acontecimento – mas sobre quando - QUASE - fomos um corpo a ocupar dois lugares ao mesmo tempo. Sobre aquele momento anterior em que éramos apenas dois corpos perdidos nos eventos que conhecemos e lembramos - você melhor do que eu – e em eventos desconhecidos, que entram como um exercício bobo e quase sádico - e ai já não é retrospectiva e sim, inventrospectiva – de imaginar situações em que, não fazíamos ideia, mas poderíamos estar fisicamente próximos de sermos um. Sim, a gente não era a gente ainda, mas bem que poderíamos estar, em algum momento, numa locadora de filmes, com os nossos pais, separados por uma única prateleira. Eu tendo que escolher entre um suspense ou ficção científica, que me tornariam a roteirista que eu sou hoje, e você, confuso sobre levar a gravação de um show dos Beatles ou um documentário, e no fim levando os dois, o que viria a confirmar sua velhice prematura, a sua estoicidade, e inauguraria, também, um comportamento de consumo hoje perfeitamente ilustrado no seu carrinho da Amazon. É possível que tenhamos estado na mesma fila, em algum lugar? Que tenhamos nos esbarrado? Ou que tenhamos assistido à mesma sessão de cinema, você melhor sentado que eu, pois claro, comprou o ingresso antecipadamente? Será que nesse cinema, eu amava alguém e você também, sem que nem imaginássemos que o seu “gente” tava ligado a outra coisa que não era o “a”, e que o meu “a” bem que poderia até estar ligado a uma outra espécie de gente, como muitas vezes esteve, pois você há de concordar, quando se é um “a” em busca de um “gente”, a confusão gerada pela oferta de pessoas no mundo não é só possível como razoável. Enquanto que "gente", por outro lado, o máximo de erro que pode cometer é namorar um artigo definido ou um a craseado. (Aqui eu poderia explicar que o a do “a gente” é um pronome, mas vou deixar esse mau hábito de explicar as coisas para pessoas como você, lembrando que o mau, neste caso, foi usado dessa forma por ser contrário de bom e sim, eu continuo explicando as coisas para que você entenda o quanto é chato). Pois bem, é curioso pensar nas maquinações do destino, que deve ter tentado nos “a gentiar” inúmeras vezes, sem sucesso. E também divertido imaginar a frustração dele, que nos posicionou naquele show, frente a frente, nariz com nariz, all star com qualquer sapato, apenas para testemunhar sabe Deus que número de chance das nossas vidas ser desperdiçada. Não é engraçado que eu tenha tocado em você, conversado, rido e depois ido embora, sabendo hoje quem você éra? (Nesse caso não cabe presentérito futuro, só presenturo, algo que eu acabei de inventar). Um "gente" ali parado na minha frente, e eu tratei como algo banal. Você percebe o que isso significa? Significa que eu estive, diante de você, numa situação análoga a de um humano diante de uma fada, porém sem conseguir identificá-la, uma vez que a usura dos seus antepassados retirou dele, e de todos nós, 10 cadeias de DNA e a capacidade de interagir com o mundo mágico. Ainda que o exemplo venha sustentado numa cientificidade no mínimo suspeita, acho justa a comparação pois o amor não parece mesmo algo que seja deste mundo nem para todos. E reconhecê-lo, não é, de certa forma, algo mágico? Talvez seja mesmo isso, que formar um a gente desafie não só a leis da física como também nos permita reconhecer algo que desafie a lógica do nosso mundo. A gente, afinal, é isso: um corpo ocupando dois lugares ao mesmo tempo e, ao mesmo tempo, dois corpos ocupando o mesmo lugar. Nós dois somos um e nós um somos dois, existimos e não existimos, e a nossa música está errada, sabe? Não há mais gente como a gente no mundo. Só há a gente.

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